30 agosto 2014

Cultura de periferia

Geralmente quando se fala de funk, arrocha, brega e afins, sempre tem alguém que torce o nariz, alegando "não ser cultura", ou que é "vulgar". Essas pessoas, por comumente encontrarem esse pensamento disseminado, o aceitam como verdade e pouco questionam de onde vem tal pensamento.

Há tempos atrás não conseguia parar de pensar nisso. Todo mundo dizia que esses ritmos eram invariavelmente ruins, mas o que tornava eles ruins?  Alguns diziam ser os ritmos, mas logo percebi não ser o caso. O funk, por exemplo, é uma música eletrônica única no mundo, que diferente da maioria dos subgêneros de eletrônico, que são tonais, é basicamente percussiva, usando samples que misturam sons sintéticos com os batuques brasileiros, e às vezes pegando algum outro elemento gravado, sendo quase que uma forma artesanal de produção do ritmo.

Passando essa questão, muitos disseram serem as letras o problema. Os funks "proibidões" são carregados de palavrões, e até alguns mais leves usam muita conotação sexual na música, o que leva muita gente a desconsiderar a validade lírica do ritmo perante ao MPB, por exemplo. É bom lembrar que música não tem um propósito único: pode falar de questões sociais e políticas, de questões metafóricas, de questões sentimentais e românticas, ou pode fazer dançar e servir para entreter também. Esse ultimo é o caso da maioria dos funks. Mas não de todas as músicas de periferia: o arrocha e o brega, por exemplo, geralmente retratam mais de amor. E, como em todo estilo, existem letras mais ou menos desenvolvidas com menor ou maior teor expressivo dentre as milhares músicas do estilo, e portanto, generalizar é só uma tentativa de descartar a validade ritmo.


Foi então que descobri, não no ramo da cultura, mas da linguística, um cara chamado Maurizio Gnerre. Ele estudava variação linguística, tentando entender como a língua mudava tanto de lugar pra lugar e de grupo social pra grupo social, e como algumas dessas variações podiam ser mais "erradas" que outras, de acordo com o censo comum. Ele chegou a conclusão que não existia como você dizer quantitativamente se um grupo variava mais ou menos da norma padrão, ou seja, não tinha essa de "falar errado" e "falar certo", é tudo linguagem coloquial. Foi aí então que ele percebeu de onde vinha a relação de valor da língua:
"Uma variedade linguística 'vale' o que 'valem' na sociedade os seus falantes, isto é, vale como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais"
Ou seja: o que faz certa fala ser considerada errada em nossa sociedade não é porque ela é gramaticalmente, sintaticamente ou culturalmente menos expressiva do que outra, mas simplesmente porque ela associada a um grupo mais excluído. E, perceba bem, essa afirmação vale não só para linguística, como também para cultura como um todo.

"Mas você não pode estar me dizendo que funk é bom!! Eu ouço, e não gosto!" Sim, é exatamente isso que estou dizendo. Assim como muitas ideias instauradas em seus respectivos períodos, como a escravidão racista e os jogos de gladiamento na política de Pão e Circo romana, as pessoas tentem a normativizar padronizações como regulares. A música da periferia não é ruim porque traz elementos pouco originais ou de menor importância, mas sim por que o conceito de bom gosto e refinamento cultural sempre esteve atrelado às elites, seja nas referências de como é a música "boa"e "ruim" de cada época, ou seja nas teorias acadêmicas, que apesar de abraçarem, sim, certos movimentos antigamente marginalizados, como o samba e a capoeira, só o fazem depois que eles deixam de representar uma resistência ao modelo sócio-cultural vigente e se transformam em uma incrementação folclórica desse modelo, que persiste inalterado.


Nesse momento invejo os EUA, que apesar de ainda ser um país de forte divisão social e de muita prática de apropriação cultural, soube investir em movimentos de grupos minoritários, transformando-os em grandes movimentos culturais do mundo todo. O rap é um ótimo exemplo, pois assim como o funk, ele surgiu de batidas sampleadas e letras não-cantadas, de estruturação bem simples e pouco familiar até aquele momento, sem contar que muitas vezes falava de assuntos agressivos e usava palavrões nas músicas. Isso não impediu, diferente do funk, do ritmo ter investimento de grandes gravadoras, ser consumido pelo grande público como qualquer outro ritmo, tocando em canais de música e festivais, consagrando-se hoje como um dos ritmos mais influentes atualmente - se não o ritmo mais influente - , com um passado cheio de ícones, sucessos e obras consagradas, e com artistas cada vez mais desenvolvendo o ritmo numa linha experimental/culta, como é o caso do Kanye West.

Ao contrário disso, os artistas de funk, brega, arrocha, rasteirinha etc. são, em sua grande maioria, independentes, tendo que construir modelos econômicos e de distribuição completamente novos só para se manterem na ativa (modelos muito interessantes, talvez gerem um post mais tarde). Aqueles poucos que conseguem chegar a uma gravadora têm, geralmente, as características musicais apagadas, trocando as batidas do funk pelas do EDM e mudando as letras. As poucas exceções podem ser contadas nos dedos, como é o caso de Gaby Amarantos.


A música e cultura pop nunca se consolidaram no Brasil, diferentemente da América do Norte, Europa e Japão, justamente porque temos tantas outras formas próprias de cultura popular que são muito influentes, mesmo que ainda mal exploradas. Passar a ver essas formas culturais com outros olhos é o primeiro passo para termos uma indústria cultural consolidada, podendo competir com outras que influenciam tanto o mundo. Provas disso são: o sucesso que essas músicas fazem fora do país, onde chegam como música alternativa, sem o valor depreciado que tem aqui dentro; e também como elas viraram matéria-prima para a produção de artistas de outros estilos, como Curumin, Gal Costa e Lucas Santtana, expandindo os horizontes e os limites do que é possível de fazer com essas músicas.

É absurdo num país como o Brasil, em que a diversidade é uma das bandeiras que carregamos, que o preconceito cultural ainda dite como abordamos a nossa produção perante às estrangeiras. E, claramente, só nós que perdemos com isso.